O que dizem os evangélicos sobre o incêncio na Boate Kiss: LAZER e (IN)TOLERÂNCIA CULTURAL[1]
Waldney de Souza Rodrigues Costa[2]
Introdução
No desenvolvimento da pesquisa para a produção da minha dissertação de mestrado, tenho percebido, cada vez mais, que o âmbito do lazer é profícuo para se pensar algumas articulações da religiosidade dos evangélicos. Neste texto pretendo mobilizar algumas constatações minhas, ainda que não possam ser exauridas devidamente neste espaço, através das quais percebo a articulação de um conjunto de significações do imaginário evangélico sobre lazer[3]. Através destas significações quero propor uma reflexão sobre como surgem algumas formas de pensar que se apresentam intolerantes.
Para esta tarefa proposta, quero fundamentar a minha análise em torno de um fato ocorrido este ano no Brasil que gerou grande comoção pública, incitando diversos atores a se pronunciarem sobre o caso, o que possibilitou este trabalho. Trata-se da tragédia que ficou conhecida como o incêndio da boate Kiss. Então, este trabalho visa problematizar declarações e discursos de evangélicos sobre o ocorrido. Analisando falas coletadas em pesquisa etnográfica e em sites e redes sociais, o objetivo principal é apresentar como, apesar de vários destes sujeitos se envolverem em atividades de lazer aparentemente semelhantes a que estava acontecendo na boate, algumas características do evento em que se originou o incêndio são vistas como pecaminosas e condenadas.
O texto será dividido em quatro partes diretamente ligadas ao seu título, pretendendo com isso afunilar o assunto sobre o qual quero tratar neste espaço. Inicialmente, discuto a possibilidade de falarmos em “evangélicos”, na segunda parte descrevo um pouco do que ocorreu no incidente. Na parte seguinte problematizo brevemente o uso do termo lazer e, ao final, trabalho algumas significações operadas pelos evangélicos em torno deste tipo de vivência para tentar explicar um pouco de como o imaginário lhes possibilita formas de pensar que geram este tipo de intolerância cultural, apesar de que, de forma bem ambígua, eles se apresentam tolerantes para com vivências aparentemente semelhantes.
O que dizem os evangélicos?
De imediato, eu deveria pedir desculpas pelo título do texto. Quem conhece um pouco do campo religioso evangélico sabe que é muito difícil afirmar o que os evangélicos dizem sobre qualquer coisa. Como bem acentuou a professora Miriane Frossard (2013, p. 46) ao pesquisar o turismo religioso evangélico, a heterogeneidade desta vertente religiosa impossibilita generalizações. Aliás, uma coisa a se perguntar é a que grupo religioso podemos chamar de evangélico.
Sem querer entrar em pormenores desta discussão, indico ao leitor um capítulo de um livro publicado recentemente em que Martin Dreher (2013) explica como é possível entender a relação entre protestantismo e o que se chama genericamente de “evangélicos” aqui no Brasil. Mas o fato é que, desde o período de implantação do protestantismo de missão no Brasil, os protestantes se referiam a si próprios como evangélicos (MENDONÇA, 2005). Dentre os motivos para isso, Rubem Alves afirma que era “para se distinguirem dos papistas.” (ALVES, 2005, p. 12). Ao que parece, este termo, que fazia referência ao papa, era utilizado na época para se referir aos missionários católicos.
Pois bem, o mesmo Rubem Alves afirma que o que se chama de evangélico hoje, nada tem a ver com o protestantismo clássico (ALVES, 2005, p.12). Mas, a despeito disso, me parece ser mais plausível a opção de Zwinglio Dias quando, ao se referir aos pentecostais especificamente, afirma que devido ao seu “inegável parentesco com determinadas expressões do Protestantismo de Missão, não temos como não considera-los como parte da grande família do protestantismo latino-americano.” (DIAS, 2008, s/p).
Deste ponto de vista, ainda que ajam muitas rupturas, no decorrer do “trajeto antropológico” (DURAND, 1989) das culturas que deram origem a estas cisões, é possível que algo do imaginário anterior tenha permanecido no imaginário emergente. No decorrer do texto, o leitor perceberá que acabo adotando esta posição e isso muito tem a ver com o tipo de pesquisa que tenho efetuado.
Minha pesquisa tem sido produzida com viés antropológico de caráter etnográfico e o grupo que pesquiso está inserido em uma igreja que tem passado por um forte crescimento nos últimos anos. Trata-se de um grupo composto por uma maioria de jovens entre quinze e vinte e cinco anos de uma grande igreja batista em Juiz de Fora, cidade situada na zona da mata do estado de Minas Gerais. Este grupo por nome Fixados em Cristo possui uma média de trezentos jovens ativos, segundo um de seus membros informou, e promove vários eventos para jovens. Destaquei em outro trabalho (COSTA, 2013) vários eventos de lazer que ocorreram entre 2012 e 2013 sob sua organização.
Este grupo pertence a uma das mais antigas igrejas evangélicas em Juiz de Fora. Nesta cidade há varias igrejas que reivindicam em seus nomes a identidade batista, mas é difícil precisar qual está vinculada a que convenção. Há também algumas que não são vinculadas a nenhuma. Neste cenário batista juiz-forano, a Primeira Igreja Batista de Juiz de Fora – MG (PIBJF) chama a atenção por tratar-se de uma instituição eminentemente histórica, mas que tem passado por algumas transformações recentes que parecem ser de grande relevância.
Segundo os dados de seu site oficial, foi uma igreja evangélica pioneira no Estado de Minas. Comemorando neste ano (2013) 86 anos de presença na cidade, a instituição já passou por várias reorganizações, especialmente na década de 1950. Mais recentemente, além das mudanças administrativas, a instituição passou por transformações de ordem espacial.
Ainda segundo o site da igreja, com a chegada do pastor Aloísio Penido Bertho, que é quem está atualmente na direção da instituição, ocorreu uma grande mudança no perfil da igreja. O número de membros ativos saltou de trezentos para dois mil[4]. O templo se tornou pequeno e passou-se a alugar as instalações do Ginásio Sport Club, localizado na Avenida Barão do Rio Branco, no centro da cidade, para melhor acomodar os frequentadores dos cultos realizados nas noites de sábado e domingo. Em pouco tempo, os cultos das noites de quarta também passaram a ser realizados no ginásio.
A solução encontrada para melhor acomodar as pessoas foi alugar as instalações da antiga malharia Master, também localizada na avenida Barão do Rio Branco. Durante o tempo em que estive em campo, era muito comum, especialmente no momento da coleta de ofertas, os dirigentes do culto falarem o valor do aluguel deste espaço, que se afirma ser de trinta mil reais. Trata-se de um espaço relativamente grande. Com um salão com capacidade para três mil pessoas sentadas, o espaço também agrega várias outras instalações que também são utilizadas com diversas funções.
Na apresentação destes dados o que me importa é destacar a forma breve com que esta igreja cresceu e a forma como isto aconteceu. O que tenho constatado através de pesquisa de campo é que, neste crescimento, a igreja recebeu grande quantidade de membros vindos de outras igrejas ditas evangélicas, pentecostais ou não. No contato com o grupo pesquisado, pude perceber que, apesar de assimilarem muito da visão teológica institucional, muitas significações advindas da teologia da igreja a que pertenciam anteriormente continuam a permear o imaginário destes jovens. Então, ao que parece, está acontecendo um câmbio de imaginários evangélicos, pelo menos no contexto em que estou pesquisando.
Mas penso haver motivos para se acreditar que fenômeno semelhante não está ocorrendo somente nesta igreja. Por que ele pode acontecer de outra forma que é bem mais potencializadora. Trata-se da mídia. Como acentuado por Magali Cunha (2013), parece que o Brasil está vivenciando “tempos de cultura gospel”. Desta forma, a mídia e os meios de comunicação interativos, comumente chamados de redes sociais, se apresentam como grandes veículos de promoção de religiosidades, o que promovem, em maior escala, estes intercâmbios de imaginários religiosos evangélicos.
É por estas razões acima descritas que penso ser possível de falar sobre o que os evangélicos, de maneira geral, estão pensando sobre determinados assuntos. Penso que é possível e talvez até desejável. Em determinadas pesquisas sobre temas pontuais, uma reflexão sobre como outros grupos que compõem esta grande vertente conhecida como evangélicos, pode ajudar a entender heterogeneidades que se apresentem no grupo pesquisado e é nesta linha que pretendo desenvolver esta reflexão.
Estou consciente de que existem vários problemas relativos a estas questões, mas visto que, durante algum tempo, no desenvolvimento da ciência social brasileira, a antropologia não dedicou ao protestantismo, nem mesmo a sua versão (neo) pentecostal, a mesma atenção dada às religiões de matriz afro, (MONTERO, 1999, p. 357) e que muitas pesquisas deixaram escorregar categorias nativas (leia-se institucionais) para a pesquisa sociológica, como por exemplo, a categoria de conversão, (MONTERO, 1999, p. 359); as pesquisas de viés antropológico que têm emergido não podem se deixar seduzir pela visão ou pelo recorte institucional. Pelo contrário, devem se empenhar em retratar os sujeitos em sua realidade.
Olhando para esta realidade atual descrita por Cunha (2013), a qual tentei aqui dar uma contribuição a partir do contexto que pesquiso, a consciência do que se passa em outras realidades inerentes ao contexto evangélico se apresenta para mim como uma alternativa profícua. É o que acredito que vai ser possível perceber na análise que se segue. Meu foco é sobre as falas de evangélicos sobre uma tragédia ocorrida. O tema me ocorreu em pesquisa de campo, mas a atenção aqui recairá sobre as falas que, de modo geral, foram julgadas intolerantes.
Sobre o incêndio na boate Kiss
Era um culto de jovens realizado ao sábado, situado no contexto em que descrevi acima, quando fui surpreendido com uma série de afirmações do pregador fazendo alusão ao fato de que vários jovens haviam perdido suas vidas por estarem afastados da presença do senhor, segundo ele. Tratava-se do incêndio na boate Kiss. Para além dos muitos dados que flutuam na internet sobre o que de fato ocorreu, quais os culpados e se foram julgados adequadamente ou não, antes de pensar o porquê das afirmações que foram proferidas pelo pregador, se faz necessária uma breve apresentação da situação do incêndio em si.
Em traços gerais, o que aconteceu foi que, em uma madrugada de janeiro deste ano, ocorria na boate Kiss, situada em Santa Maria – RS, um evento chamado “Aglomerados” em que aconteceria a apresentação de uma banda famosa por seus shows pirotécnicos que envolviam fogos de artifício e também a apresentação de alguns DJ’s. Ao que parece, devido a um ato imprudente durante o show pirotécnico da banda, iniciou-se um incêndio que se transformou em uma das maiores tragédias deste tipo já vista no país, com a morte de mais de duzentos jovens.
O ocorrido gerou grande comoção pública, incitando diversos atores a se pronunciarem sobre o caso. Grande polêmica se deu em torno de algumas declarações de pessoas que se identificaram como evangélicos, pois algumas afirmações se apresentaram intolerantes não só para com a cultura dos jovens que ali estavam, mas também para com a dor das famílias que perderam seus entes.
As declarações deste tipo podem ser tipologizadas em pelo menos três argumentos. O primeiro, que foi o mais projetado nas ditas redes sociais, especialmente no site Twiter, é o de que “o diabo fez sua colheita”, neste sentido, argumentos semelhantes tentavam apontar para o fato de que um ente maligno havia preparado aquele lugar para depois promover a morte das pessoas que ali se encontravam para tomá-las para si.
O segundo argumento que mais identifiquei nas redes foi o de que havia uma obreira[5] que estava na boate e acabou sendo morta pelas chamas por que estava fazendo o que não deveria. Neste sentido, os argumentos deste tipo enfatizavam o fato de que uma pessoa temente a Deus não deveria frequentar estes lugares que se apresentam como espaços de perdição. Aqueles que enfatizavam isso focavam todo o tipo de coisas ruins que poderiam acontecer nestes tipos de vivências de lazer.
O terceiro argumento é o que de um “ex-pastor” que estava “desviado” dos caminhos do Senhor, sobreviveu ao incêndio e tinha voltado para a igreja. Os que articulavam falas deste tipo, em geral, enfatizavam o fato de que este “ex-pastor”, enquanto tal, não estava tendo uma alegria verdadeira no evento. A alegria autêntica estaria na igreja e o incêndio teria servido para esclarecer este jovem sobre esta realidade.
Sobre os dois últimos argumentos citados, importa, para além da discussão sobre se de fato ocorreu o que estão falando, destacar a construção dos argumentos para entender como são articuladas as significações que compõe o imaginário destes evangélicos sobre lazer.
Antes de prosseguir com a discussão, torna-se relevante notar o fato curioso de que alguns evangélicos, possivelmente os mesmos que pronunciaram coisas deste tipo, participam de atividades de lazer aparentemente semelhantes às que estão repudiando, o que destaca o princípio de ambiguidade que compõe o imaginário religioso brasileiro. (SCHULTZ, 2007). A título de exemplo, vou colocar lado a lado um cartaz de um evento promovido pelo grupo que pesquiso e o cartaz do evento “Agromerados”, para que se possa perceber que visualmente são muito próximos na linguagem empregada.
Figuras 1 e 2 – Cartazes dos shows: Gurizada Fadangueira no evento “Agromerados” [6] e Oficina G3 na PIBJF.[7]
Lazer?
No decorrer do texto venho empregando várias vezes o termo lazer, mas como já estou caminhando para a análise e apresentação dos resultados, julgo necessário fazer uma pausa para tecer algumas considerações sobre o que estou pensando quando assim o faço. Cristina Gomes (2013) constatou, ao pesquisar uma vasta quantidade de bibliografias, que Dumazedier foi o pesquisador estrangeiro que mais influenciou a literatura científica brasileira sobre o assunto. Ao se tornar referência no Brasil, a partir da década de 70, o sociólogo teve seu conceito de lazer citado em diversas obras sobre o assunto. Tal conceito está sistematizado no livro Lazer e Cultura Popular, em que o lazer é apresentado como:
[...]Um conjunto de ocupações as quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja divertir-se, recrear-se, entreter-se, ou ainda desenvolver sua formação desinteressada, sua participação social voluntária, ou sua livre capacidade criadora, após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais. (DUMAZEDIER, 1973, p. 34)
Com este conceito, o autor conjuga dois elementos, o tempo e a atitude. Estando preocupado com o fato de que, em muitos casos, o vocábulo lazer é empregado para se referir a apensas um de seus conteúdos, de maneira muito incompleta, ele procura criar uma definição que pudesse circunscrever o fenômeno, conjugando os dois elementos que dividiam duas grandes linhas de pensadores que o precederam. (MARCELINO, 1987, p. 27). Assim, na primeira parte, enfatiza o quesito atitude quando afirma que “o indivíduo pode entregar-se de livre vontade” e, ao final, evoca o quesito tempo ao dizer “após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações”.
Mesmo sem desconsiderar suas contribuições, é importante notar que este sociólogo francês também sofreu algumas duras críticas posteriores, sendo que sua abordagem funcionalista chegou a ser acusada de um “falso humanismo”. (MARCELLINO, 1987, p. 35). Gomes (2008a) assinala que a definição de Dumazedier, ao tratar o lazer como fenômeno isolado, se revela frágil por não dar conta de vivências dinâmicas que hoje são facilmente observadas na realidade, como as que serão tratadas nesta pesquisa. Ela cita como exemplo a ambiguidade do conceito de “semilazer” criado pelo próprio pesquisador. (DUMAZEDIER, 1979).
Na preocupação de separar um quadro de atividades às quais não subsistisse qualquer dúvida de serem opostas ao lazer, Dumazedier engloba “atividades rituais ou ligadas ao cerimonial, resultantes de uma obrigação familiar, social ou espiritual (visitas oficiais, aniversários, reuniões políticas, ofícios religiosos)”. (DUMAZEDIER, 1973. p.31). Condicionado pelo seu tempo, o pesquisador não previu que conteúdos culturais abertamente reconhecidos por ele como lazer, poderiam ser conjugados com os “ofícios religiosos”, dando origem a vivências complexas como as que surgem no mundo gospel de hoje.
Sendo assim, esta definição que busca identificar o que é lazer com intensa preocupação em destacá-lo das obrigações, não se mostra suficiente para descrever vivências desse tipo, que se contrastam com a vivência promovida no evento “Aglomerados”. Marcellino (1987) percebeu esta limitação e, ao propor o lazer como elemento pedagógico, recomenda outra visão que, tanto valorize o fenômeno em si mesmo, quanto entenda a sua íntima dialética com as demais esferas sociais. Inspirado em Geertz (2008), ele defende que o lazer seja interpretado como a “cultura vivenciada no tempo disponível”. (MARCELLINO, 1987, p.29).
Para Gomes (2008a), há hoje uma tendência da literatura científica brasileira a esta tipo de abertura antropológica. É o que explora em suas obras posteriores. Ela que, anteriormente (GOMES, 2008b), buscando retomar as raízes históricas na Grécia Antiga, entendia o lazer como um fenômeno que englobava quatro elementos, sendo: tempo e atitude, conjugados por Dumazedier (1973, 1979), mas também espaço e cultura; explorados por Marcellino (1987); agora volta sua atenção totalmente para o âmbito cultural. Tal posicionamento surgiu após perceber que, quando as raízes do fenômeno são remetidas ao mundo ocidental, seja à modernidade ou à Grécia antiga, as concepções que emergem não contribuem muito para explicar vivências do lazer em outros contextos marginais, como a América-latina.
Como resultado desta nova perspectiva, Gomes e Elizalde conceituam o lazer como “a vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço social”. (GOMES; ELIZALDE, 2012, p. 30). Estou tendente adotar esta perspectiva, pois, pensando este fenômeno de um ponto de vista cultural e tratando a cultura em perspectiva semiótica (GEERTZ, 2008), é possível perceber que, ainda que não chamem eminentemente de lazer, algumas significações que povoam o imaginário das várias vertentes evangélicas, se referem a este mesmo fenômeno. Algumas destas significações dão vazão a afirmações intolerantes do tipo acima exposto. Entender um pouco delas é a tarefa a seguir. Para facilitar a leitura para aqueles que não estão familiarizados com discussões que flutuam em meio aos estudos do lazer, sugiro que leia-se lazer como diversão.
(In) tolerância cultural? Algumas significações dos evangélicos sobre lazer
Para entender estas interpretações dos evangélicos que se apresentam intolerantes, julgo ser necessária uma breve exposição de algumas significações que compõem o imaginário dos evangélicos sobre lazer. Lendo a bibliografia sobre a inserção do protestantismo no Brasil, especialmente aquele dito protestantismo de missão, identifica-se que, como foi muito influenciado pelo pietismo estadunidense (MENDONÇA, 1994), foi gerado em seu interior uma significação que pode ser entendida como a “neurose do tempo” (MENDONÇA; VELASQUES FILHO, 1990, p. 187), segundo a qual emerge a imagem do protestante como aquele que não deve desperdiçar o seu tempo, aproveitando-o para se dedicar ao serviço da “obra do senhor”.
Quando o pentecostalismo ascende no Brasil, são promovidas outras significações, advindas do “repto pentecostal à cultura católico-brasileira” (SANCHIS, 1996). Nota-se que a oposição ao catolicismo, que já estava presente no protestantismo anterior, foi acentuada com as primeiras igrejas pentecostais que, transferindo tal oposição à cultura em geral, criaram a imagem de que algumas vivências comuns de lazer dos brasileiros, embora pareçam prazerosas, são na verdade, “falsas alegrias” que não se comparam à “alegria da salvação”; são “lugares de perdição”, visto que os frequentadores destes espaços estão condenados ao inferno; e também são espaços de atuação demoníaca, em que participar destas vivências é “abrir brecha” para que o diabo possa atuar na vida do crente.
Ainda surgiram novas significações que recentemente emergiram no imaginário evangélico sobre lazer. As principais são advindas da abertura neopentecostal, que passou a valorizar o lazer como algo importante e até desejável na vida do crente. Mas não se pode ignorar as significações advindas do gospel, através do qual foram criados espaços híbridos entre a diversão e a religiosidade, tornando ambíguas algumas vivências que, variando o conteúdo, mantém a forma das vivências de lazer ditas seculares.
É na operação deste emaranhado de significações, algumas aparentemente contraditórias, que surgem as afirmações tidas como intolerantes feitas sobre o incêndio na boate Kiss. Especialmente aquelas advinhas do pentecostalismo clássico. A visão de que “o diabo fez sua colheita”, por exemplo, opera a ideia de que o evento “Aglomerados” era na verdade um espaço de atuação demoníaca; o fato de se acentuar que “uma obreira morreu por que estava nesta festa” opera a significação de que são lugares de perdição. Por último, o argumento de que “o pastor sobrevivente voltou para a igreja” acentua a significação de que são lugares de uma “falsa alegria”, ou seja, a alegria verdadeira é estar na igreja. Interessante como estes dois últimos pontos se deram no contexto da Igreja Universal do Reino de Deus, tida como expoente do neopentecostalismo, caracterizado por uma abertura comportamental, mas que não consegue apagar de todo o imaginário do pentecostalismo precedente. Este fato torna latente a ambiguidade da discussão.
Considerações finais
Como foi discutido do decorrer do texto, existem várias interpretações a respeito do que representem o tipo de vivência do qual se tratava o evento que deu origem ao incêndio na boate Kiss. De maneira geral, algumas interpretações de evangélicos podem ser vistas como intolerantes, pelo tipo de leitura que fazem da situação que ocorreu. Como pude demonstrar, estas interpretações advêm de algumas significações que compõem o imaginário evangélico sobre lazer, fazendo parte da visão de mundo destes sujeitos, ou seja, sua cultura. Algumas são até muito ambíguas, visto que alguns evangélicos curiosamente participam de eventos aparentemente semelhantes. Mas o que concluo é que as afirmações, que podem ser lidas como uma espécie de intolerância cultural, poderiam ser pensadas em outra chave, como fruto de algo que já possui um termo técnico bem adequado: etnocentrismo. Sendo este uma tendência natural das culturas, se faz necessário aprofundar a reflexão sobre a forma como entendemos estes sujeitos.
Referências
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Quem somos. Disponível em: < https://www.pibjf.com.br/quem-somos.php >. Acesso em: 5 junho 2013
[1] Trabalho apresentado no 1º Simpósio Internacional da ABHR como comunicação em Grupo de trabalho, realizado em outubro de 2013. Link para os Anais do evento: https://www.sudesteabhr.net.br/wp-content/uploads/2013/10/anais-06-11.pdf
[2] Mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Ciências Humanas (2012) pela mesma instituição e em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson José Sena da Silveira. E-mail: dnney@ibest.com.br
[3] Por imaginário tenho entendido um conjunto de significações imaginárias (CASTORIADIS, 1982) que agrupadas, constituem um conjunto através do qual o sujeito lê a realidade definindo suas formas de pensar e agir, ou seja, permeia sua cultura. Nos termos de Gilbert Durand (1989), estas significações são construídas através de um “trajeto antropológico”.
[4] Esta também é uma informação do site. Talvez seja questionável, visto que é muito comum as igrejas superestimarem o contingente de membros que possuem. Mas no período que estive em campo, ocorria uma campanha de recadastramento de membros, em que as pessoas são convocadas a atualizar seus dados na secretaria da igreja, para confirmar que estão ativos. Esta campanha tem sido realizada todo ano nesta igreja, ao que parece, numa forma de controlar a quantidade de votos necessários para aprovar as decisões de assembleias, como a que foi realizada para definir um estatuto de uma casa de recuperação de narcóticos a ser criada. Acredito que este fato aumenta a confiabilidade dos dados informados.
[5] Termo utilizado por algumas denominações evangélicas para identificarem uma cooperadora, também é chamada de diaconisa em alguns contextos.
[6] Boate promoveu festa Agromerados que virou tragédia. Disponível em: <www.noticiasnobrasil.org/2013/01/a-festa-agromerados-na-boate-kiss-vira.html>. Acesso em: 3 junho 2013.
[7] Oficina G3 em Juiz de Fora. Disponível em: < https://www.radiovidacataguases.com/index.php/evento.php?id=22 >. Acesso em: 5 junho 2013.