Uma aproximação metodológica entre a História e a Antropologia[1]
Waldney de Souza Rodrigues Costa[2]
RESUMO: O texto discute brevemente a origem da Micro-História como uma alternativa metodológica. Acredita-se que tem ocorrido ultimamente uma aproximação maior entre a História e a Antropologia. As novas metodologias que resultaram estão conduzindo a historiografia a um novo momento. A grande virada metodológica da Antropologia, marcada principalmente pela nova forma de interpretação e coleta de dados de Malinowski, parece ter ido ao encontro das novas propostas historiográficas que buscam um contato maior com as fontes. Como resultado, tem-se o surgimento da Micro-História como uma nova alternativa metodológica. Defendida por Fragoso, ela tem apresentado alguns frutos e está hoje entre as discussões mais emergentes da Academia.
PALAVRAS-CHAVE: História. Antropologia. Metodologia. Micro-História.
INTRODUÇÃO AOS PRIMEIROS PASSOS:
A Interdisciplinaridade, que é uma marca daquilo que alguns autores denominaram de pós-modernidade, não é um tema totalmente inovador entre as Ciências Humanas. Isso porque durante algum tempo muitas destas ciências se confundiram umas com as outras. No caso da História, nos seus primeiros passos, em alguns momentos era difícil distinguir se quem argumentava era um sociólogo, um historiador ou um geólogo. Eles se confundiam. Esta área do conhecimento sempre teve um diálogo próximo com as Ciências Sociais, a Economia, a Geografia, e até mesmo a Estatística.
Não obstante este quadro, o que se assume no texto que se segue é que, nos últimos tempos, devido a uma série de fatores que não serão ao todo descritos aqui, ocorreu uma aproximação maior entre a História e a Antropologia. Ao que parece, este aproximar foi muito frutífero, pelo menos metodologicamente. As novas metodologias que resultaram estão conduzindo a abordagem histórica a um momento que muitos pensadores já assumem haver uma renovação no saber historiográfico, pois elas estão provocando uma releitura dos antigos paradigmas da História Social.
O que se fará a seguir é expor, mesmo que limitadamente, o desenvolvimento recente destas duas áreas do saber, tentando entender de forma sintética o que levou a esta aproximação. A princípio, discute-se um pouco de cada uma separadamente, tentando remontar a virada metodológica que pensadores dos dois lados vivenciaram nestas últimas décadas. Depois arrisca-se explicar como, e em que ponto, elas começaram a se tocar de forma mais intensa. E por fim apresenta-se a Micro-História, não como uma vertente da Historiografia, mas como uma metodologia de abordagem historiográfica (BARROS, 2007), que acreditamos ter decorrido dessa aproximação, avaliando alguns dos possíveis ganhos de seu emprego.
Esta divisão proposta é para fim de organizar as idéias. Não se quer com ela, alegar que a História e a Antropologia só começaram a dialogar agora. Bem é verdade que estas duas ciências sempre estiveram em contato. Mas o que se sustenta no texto é que este contato não só aumentou como também foi direcionado. Devido ao caráter sucinto, apresentar-se-á poucos autores, mas que podem ser considerados os teóricos mais expoentes sobre o assunto. E quanto à metodologia resultado, o foco será a Micro-História tal como é proposta por João Fragoso (1997).
O CAMINHO TRILHADO PELA ANTROPOLOGIA:
A partir do que foi exposto por Max Gluckman (1975) no congresso Internacional de Stresa em 1959, pode-se nomear Bronislaw Malinowski como um divisor de águas para a Antropologia Social. Apesar de ser criticado, até pelo próprio Gluckman, pela sua fraqueza teórica em relação a outros Antropólogos de renome de sua época, o valor de sua obra não é de cunho teórico e sim metodológico e é isso que será analisado aqui, pois a teoria é apenas uma face da ciência. Existe outra face, de equivalente importância que é tratamento dos dados os quais submetemos à análise.
Malinowski (1984) trabalhou para convencer através da etnografia que a vida e as instituições de outros povos eram de uma complexidade muito maior do que os seus teóricos anteriores acreditavam. Só o fato de ter utilizado apenas a língua local em seu trabalho já lhe propiciou fazer observações sobre a vida dos moradores das ilhas Trobriand bem distintas em relação aos viajantes ocasionais. Seu próprio pensamento foi influenciado profundamente pela mudança da natureza de seus dados.
Este renomado autor, que veio a ser considerado o pai da Antropologia Social Inglesa, inaugurou aqui um diferencial no olhar antropológico, marcado pelo surgimento das leituras etnográficas apontando a busca por uma visão “de perto e de dentro” em oposição à visão da Antropologia de sua época que era “de fora e de longe” [3]. Sua grande contribuição reside no método de se obter fatos, pois gerou uma mudança importante no uso dos dados etnográficos dentro deste tipo de Antropologia praticada principalmente na Inglaterra.
Neste ponto, cabe lembrar a definição de cultura de Geertz (1989) que não a entende como um conjunto de elementos apenas, mas como uma rede de significados, em que elementos culturais influenciam e são influenciados mutuamente, como uma espécie de teia. Ao analisar este conceito à luz do que propôs Malinowski, é possível enxergar que, quando visto de perto, um único dado exorbitante constatado na análise pode servir para desconstruir e reconstruir toda a visão sobre uma cultura inteira. Por isso se faz necessário uma aproximação entre o sujeito e os sujeitos/objeto de estudo, a fim de perceber melhor esta realidade. Esta talvez seja uma das maiores contribuições da Antropologia às outras Ciências Humanas.
O CAMINHO TRILHADO PELA HISTÓRIA:
A História, como outras ciências humanas, sofreu forte influência marxista em sua origem. Este fato fez com que historiadores diversos, grafassem uma história marcada pelas grandes estruturas do pensamento de Marx. Não que se deva atribuir algum valor pejorativo a esse tipo de enfoque por si só. Deve-se a esta abordagem das macroestruturas grande parte dos modelos interpretativos que são utilizados até os dias de hoje, principalmente no ensino da História na educação básica. Mas nos últimos tempos ela começou a ser questionada.
O antigo olhar fez com que a História durante muito tempo fosse reduzida praticamente à História Econômica, mas isso não corresponde mais à realidade. João Fragoso e Manolo Florentino (1997) apesar de acreditarem que a abordagem economicista da História ainda possa produzir algum fruto, destacam que ela sofreu um grande desprestígio na Academia, e que já está bem evidente aquilo que se ganha caminhando por outros tipos de abordagem.
O fato é que surgiram autores que começaram a se perguntar sobre a eficácia dos modelos macrossociais. Eles levantaram críticas aos grandes processos globais que tantas vezes davam pouca ou quase nenhuma atenção às estruturas internas. Estes autores passaram a valorizar o contato com as fontes e sobre os mesmos temas, começaram a chegar a resultados muito diferentes de seus antecessores que partiam apenas de uma reflexão teórica. Isso porque começaram a lançar um olhar mais apurado sobre a cultura que cerca a fonte a qual eles mesmos utilizam.
Há quem diga que a perspectiva cultural da História é anterior ao movimento dos analles, mas é o surgimento da própria revista dos analles, uma forma de protesto dos pensadores da época contra a história política que era apresentada até então. Mais precisamente, é a partir da terceira geração doa analles que a abordagem antropológica ganha força entre os estudos historiográficos. Historiadores que começaram a estudar pensadores como Pierre Bourdieu e Michel de Certeau se propuseram a adaptar algumas idéias deles para escrever uma história sob uma preocupação antropológica.
Foi assim que se despertou o olhar antropológico do historiador. Quando o pesquisador se dá conta que não pode ficar tão distante de seu objeto de estudo. Há um movimento forte de busca pelas fontes e por uma análise que seja muito mais qualitativa do que quantitativa. E quando o historiador se aproxima das suas próprias fontes, entra em confronto direto com a cultura que cerca esta fonte. Se a fonte foi gerada culturalmente, ela traz consigo todo o arcabouço da cultura que a gerou. Não podendo em hipótese alguma o historiador analisá-la de outra forma.
O ENCONTRO:
Agora ficou bem evidente o ponto ao que se quer chegar neste texto. O movimento metodológico ocorrido na História se assemelha ao movimento da Antropologia. Não demorou muito até alguns autores começarem a correlacionar conceitos e aproximar cada vez mais estas Ciências. Tem-se então, o surgimento de uma opção metodológica que parece ser a que mais expressa este encontro, a Micro-História. Analisada aqui sob a perspectiva de Fragoso (2006) que a tratou como uma alternativa aos modelos macrossociais de abordagem.
A Micro-História nasce da realidade de que muitos historiadores, ao partirem para o estudo, vão carregados de uma munição teórica que, apesar de ser perfeitamente justificável, deixa escapar várias formas de interações sociais que são praticamente impossíveis de aparecer a nível macro. A linguagem das macroestruturas permite o surgimento de anomalias, digo, formas de interações que não caminham da forma esperada pelas grandes teorias.
Fragoso (2006) explica isto de forma bem clara quando utiliza um exemplo de um confronto entre dois senhores por um pedaço de terra em que um deles arma os seus escravos negros para brigarem por ele. Algo muito difícil de entender partindo do pressuposto que os escravos eram a classe que se rebelava. Porque então estavam eles agora lutando em prol de seu senhor? Constatar uma realidade desta, em que tenha ocorrido algum tipo de autoridade negociada em pleno escravismo, somente é possível através de uma abordagem micro analítica que procure as suas fontes mais de perto.
Não se pretende com a Micro-História fazer apenas uma história local ou história cultural e é aqui que mais uma vez dialoga-se com a Antropologia. A Micro-História é o emprego de uma redução de escala para procurar entender melhor a História geral. É semelhante ao Antropólogo que através de um rito consegue perceber profundas divisões e estratos existentes em uma civilização. Nas palavras de Fragoso ela “consiste em um modo de captar o funcionamento real de mecanismos que o nível macro deixa escapar” (2006).
DE MÃOS DADAS A CAMINHAR:
Pode-se ousadamente resumir em uma palavra a contribuição que a Antropologia pode dar à História: contexto. O contextualizar vem se tornando cada vez mais importante para o historiador. Não é o tipo de idéia que visa dominar e abandonar todos os modelos interpretativos que serviram de chave hermenêutica até aqui, mas que pretende aguçar um pouco mais de desconfiança a cerca da eficácia de pressupostos, a fim de perceber a complexidade do objeto de estudo.
A troca de procedimentos que traz como consequência o abandono de alguns métodos e adesão a outros, envolve uma resposta aos novos anseios da análise social. Neste sentido, é preciso levar em conta a especificidade do trabalho do Historiador, que tem um dificultador a mais que o do Antropólogo. Se este último possui o recurso de observar as relações vividas, o primeiro somente tem acesso às fontes. Esta nova abordagem que traz em seu arcabouço algumas sérias críticas às abordagens estruturalistas, aponta também para um novo desafio. É agora, através da Micro-História, lançada uma responsabilidade maior sobre o historiador, a de se aproximar o máximo possível de suas fontes.
Deve-se lembrar que esta nova forma de pensar não é hegemônica entre os pesquisadores. Existem muitos que ainda preferem as macro abordagens utilizando as grandes estruturas para montar seu horizonte hermenêutico a fim de compreender os dados que são coletados. Se bem que esta atitude influencia desde a coleta, pois tem um enorme peso na hora de selecionar o material a ser interpretado. Apesar disso, os debates estão aquecidos e as abordagens sobre a Micro-História estão entre as discussões mais emergentes da Academia, e isso também tem seu valor. Espera-se que este texto tenha lançado um pouco de luz sobre a origem do debate.
BIBLIOGRAFIA:
BARROS, José. Sobre a feitura da Micro-História. Opsis, Porto Alegre, v. 7, n. 9, p.167-185. 2007.
COMARROF, Jean e John. Etnografia e Imaginação Histórica. Revista Proa, Campinas, v. 01, n. 02, 2010. Disponível em:< https://www.ifch.unicamp.br/proa>. Acesso em 13 set. 2012.
FRAGOSO, João. “Alternativas metodológicas para história econômica e social: micro-história italiana, Fredrick Barth e história econômica colonial”. In.: ALMEIDA, Carla Maria Carvalho e Oliveira; Mônica Ribeiro (orgs) Nomes e Números: Alternativas Metodológicas para a História Econômica e Social. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2006. p. 27-48
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas Rio de Janeiro: LHC, 1989
GLUCKMAN, Max. “O material Etnográfico na Antropologia Social Inglesa”. In.: ZALUAR, Alba (org.) Desvendando as Máscaras Sociais. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1975. p. 63-76
FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. “História Econômica” In.: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 27-43.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 17, n. 49, p. 13-29, 2002.
MALINOWKI, Bonislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
[1] Trabalho apresentado como requisito parcial para a aprovação na disciplina Tópicos Especiais em História Econômica e Social III oferecida na graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora e aproveitada pelo autor no Bacharelado Interdisciplinar em Ciências Humanas da mesma instituição. Disciplina ministrada pela professora Dra. Mônica Ribeiro de Oliveira no segundo semestre de 2012.
[2] Atualmente mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Interdisciplinar de Ciências Humanas (2012) e graduando em Ciências Sociais pela mesma instituição e bacharel em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson Sena da Silveira. E-mail: dnney@ibest.com.br
[3] Distinção feita por Magnani (2002)