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Dicas ao pesquisador de campo de primeira viajem

Dicas ao pesquisador de campo de primeira viajem

A descrição como trabalho etnográfico

Waldney Costa[1]

Resenha do Texto:

GEERTZ, Clifford. Uma Descrição Densa: Por uma teoria interpretativa da cultura. In: A Interpretação das Culturas. 1ª ed. 13ª reimpr. Rio de Janeiro: LHC, 2008. p. 3-21.

 

Com o desenvolvimento científico envolto pelo paradigma da interdisciplinaridade que valoriza o contato entre campos acadêmicos e o atual reconhecimento das contribuições da Antropologia como campo de conhecimento, tem-se ampliado a quantidade de estudos de diferentes áreas acadêmicas que passaram a utilizar a pesquisa de campo como instrumento metodológico. Em áreas eminentemente multidisciplinares como Ciência(s) da Religião e Estudos do Lazer, é muito comum encontrar estudos etnográficos. Por este fato, se faz relevante pensar a prática etnográfica em si. Para isso, é inteiramente útil retomar as contribuições de Clifford James Geertz, antropólogo estadunidense que durante três décadas foi considerado o antropólogo mais influente nos Estados Unidos, uma vez que sua influência também se estende ao Brasil.

Uma Descrição Densa é o primeiro capítulo da obra A Interpretação das Culturas, considerada uma da mais importantes de Geertz. No prefácio do livro, pode-se perceber que este texto foi adicionado posteriormente, numa tentativa de seu autor afirmar de forma mais geral a sua posição assumida nos ensaios que compoem o livro. Há algumas diferenças quanto às preocupações de Geertz, que mudaram ao longo dos quinze anos que passaram desde a primeira edição do texto, mas no geral, o conceito de cultura é uma chave para se entender todo o conteúdo. Pode-se dizer que o livro é uma espécie de tratado de teoria cultural através de análises concretas e que este primeiro capítulo é a explicação do autor sobre qual o pensamento que norteou a construção dos ensaios a serem apresentados nos capítulos seguintes.

Geertz inicia problematizando o uso das ideias, especialmente a ideia de cultura. Para ele, é preciso aplicá-la onde ela realmente se aplica e desistir quando ela não pode ser aplicada. É um conceito que, segundo o autor, pode ser mais poderoso teoricamente, se entendido de forma mais limitada. Faz isso em oposição a Taylor, que para ele, tratava o conceito de cultura de forma muito abrangente. Na tentativa de fugir de uma difusão teórica, através de uma ciência interpretativa em busca do significado, concebe um conceito semiótico de cultura como as teias que amarram o homem, quais ele mesmo teceu.

A despeito de algumas possíveis críticas, Geertz volta a sua atenção para a prática. Por isso, é através da prática etnográfica que ele acredita poder entender a Antropologia como forma de conhecimento. Mas não como um aparato metodológico em si, e sim pelo esforço intelectual que a envolve.  Esforço que o autor utilizando Ryle o apresentada como sendo por uma descrição densa.

Segue a partir daí, uma parte deste texto que é muito conhecida. É o exemplo criado por Ryle sobre a diferença entre o ato de contrair a pálpebra e uma piscadela. Exemplo que atualmente é mais conhecido como de Geertz, do que de seu criador. É utilizado para explicar a diferença entre uma descrição superficial e uma descrição densa. É entre elas que está o objeto da etnografia que, segundo o autor, consiste em “uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos os quais os tiques nervosos, as piscadelas, as falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles de fato não existiriam” (p.6).

Geertz completa o exemplo de Ryle, com outro sobre os carneiros de Marrocos, retirado de seu caderno de campo, mas ambos são utilizados para exemplificar que a descrição etnográfica é eminentemente densa. Ele demonstra que descrever pode ser entendido também como uma forma de interpretar e não só descrever. É explicar explicações. Piscadelas de piscadelas de piscadelas. Em última instância, a etnografia é uma descrição densa. É uma descrição que está envolta de estruturas conceituais múltiplas e complexas, muitas irregulares, estranhas, sobrepostas e que não se apresentam de maneira explícita. Sendo que o etnógrafo tem que encontrar uma forma de aprender estas estruturas para depois apresentar.

Passando por uma discussão sobre os perigos de se reificar ou reduzir a cultura e por uma problematização sobre se é possível descrever o que o nativo realmente pensa, Geertz procura se opor a Goodenough afirmando que a cultura é pública assim como o significado, mas que o pesquisador pode não dominar os signos. Sendo assim, o que impede um real entendimento sobre uma atuação não é a ignorância sobre ela, mas a não compreensão do seu significado.

No trabalho etnográfico, Geertz não acredita que seja possível tornar-se nativo, nem mesmo copiá-lo. Está convencido de que, como empreendimento científico, o texto antropológico consiste em uma tentativa de formular a base na qual se imagina estar-se situado, sendo a cultura o contexto situacional passível de ser descrito com densidade. É nesta forma de tratar os resultados que Geertz se diferencia de Goodenough. O texto/resultado é considerado uma interpretação, sendo que só o nativo faz a interpretação de primeira mão, enquanto que o pesquisador usa de sua imaginação.

Neste sentido, os textos antropológicos são ficção, no sentido de coisa construída, mas com a diferença de carregar em si a busca por anotar um fato, não criá-lo como na literatura. Esta “descrição densa”, embora não seja em si a cultura, cumpre a função de reduzir a perplexidade diante de culturas. E citando Paul Ricoeur, Geertz relembra que o ato de escrever é anotar o significado do ato de falar sobre um acontecimento e não anotar o acontecimento em si.

Então para Geertz, o que faz o etnógrafo? Ele observa, registra e analisa, sendo que tais atos não gozam de autonomia uns em relação aos outros e esta análise cultural não é exatamente uma descoberta dos significados, mas uma interpretação deles. Como principais características da descrição etnográfica, tem-se que ela é interpretativa do discurso social, sendo que esta interpretação resguarda o que está sendo interpretado de sua extinção e o fixa em uma forma pesquisável. Interpretação que especialmente para Geertz é microscópica. Esboça conhecimento extensivo de assuntos muito pequenos.

Geertz defende a especificidade do local etnografado, entendendo que compreender a cultura de um povo é expor sua normalidade sem reduzir sua especificidade. Valoriza que se aponte esta especificidade e não se preocupe com as grandes estruturas, sendo este o mérito da Antropologia. Por isso ele diferencia estudar na aldeia de estudar a aldeia e critica duramente a ideia de laboratório natural. Defende também que os dados etnográficos não são privilegiados, apenas particulares, alegando que a não clareza disso pode implicar em uma distorção dos dados e da teoria. A importância dos dados etnográficos deve-se então a sua especificidade complexa (circunstancialidade). Com estes, os conceitos da ciência social assumem atualidade para se pensar concretamente e criativamente sobre si mesmos.

Partindo disso, Geertz comenta a dificuldade de abstração teórica da Antropologia, que necessita estar sempre amarrada à realidade concreta, afirmando que é extremamente difícil abstrair as contribuições teóricas dos estudos que geraram as etnografias para criar uma teoria cultural. Quando afirmadas independentemente, parecem vazias. Então a sua posição é de que a tarefa do etnógrafo não seja abstrair a partir dos casos, mas dentro deles, semelhante à inferência clínica.

Sobre o papel da teoria, o autor afirma que a teoria cultural não é profética e lembra que tem-se tornado comum, condicionar a teoria aos dados. Caso deixe de ser útil à realidade, troca-se a teoria. Para Geertz, na etnografia, o papel da teoria é “fornecer um vocabulário no qual possa ser expresso o que o ato simbólico tem a dizer sobre ele mesmo — isto é, sobre o papel da cultura na vida humana.” (p.19).

Agora, sobre o objetivo do trabalho etnográfico, este é para Geertz, “tirar grandes conclusões de fatos pequenos, mas densamente entrelaçados.” (p.20). No caso do exemplo retirado se deu caderno de campo, ele afirma que descreveu um fato densamente para criar um argumento de que alterar o padrão das relações sociais reordena as coordenadas do mundo experimentado.

Mas ele não deixa de problematizar a possibilidade de se chegar a conclusões. Explica que “a análise cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos completa.” (p.20). Lembra também que o comprometimento com esta visão de cultura e prática interpretativa leva a tomar qualquer afirmação etnográfica como essencialmente contestável. Então sua posição é evitar extremos e manter as descrições próximas a situações concretas, sem demasiadas abstrações que correm o risco de se desconectar delas. Conclui afirmando que a vocação da antropologia interpretativa é descrever as respostas que outros humanos deram às nossas questões mais profundas e não responder a elas.

Como se pode perceber, este capítulo relativamente curto discute grandes problemas sobre a prática etnográfica, o próprio pensar do pesquisador sobre o que faz em campo e, principalmente, depois, ao descrevê-lo. É óbvio que não esgota todo o assunto, sendo que alguns temas são somente apontados e é importante considerar que Geertz é criticado quanto a estar extremamente preso à realidade concreta, tendo dificuldade de trabalhar grandes temas como relações de poder quando faz suas etnografias. Contudo, este texto apresenta importantes dicas para o fazer etnográfico, tais como: estar atento as “piscadelas” do campo, que quase nunca são óbvias, sendo que atos idênticos podem ter significados diferentes;  não se prender extremamente a teorias e “deixar o campo falar” e, sobretudo, relativizar as conclusões, pois são sempre passíveis de contestação, visto que são interpretações da realidade e não a realidade em si, sendo esta a principal contribuição ao denunciar a subjetividade do trabalho de campo. É percorrendo este caminho que Geertz construiu os ensaios que se seguem no livro e é um excelente rumo para o pesquisador que vai a campo, especialmente o “etnógrafo de primeira viagem”.


[1] Mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Ciências Humanas (2012) e graduando em Ciências Sociais pela mesma instituição e bacharel em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson José Sena da Silveira. E-mail: dnney@ibest.com.br