As transformações da sociedade na nova fase do capitalismo
Waldney de Souza Rodrigues Costa[1]
Resenha de: SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
As formas como as relações sociais e as relações econômicas se influenciam nem sempre são tão evidentes. Especialmente diante do capitalismo, este sistema econômico tão peculiar na história humana, principalmente sob a moldura que o ocidente lhe deu (cf. WEBER, 2004). Se por um lado, apesar das queixas “liberalistas”, as relações econômicas precisam ser entendidas dentro das relações sociais, como bem explicou Polanyi (2000). Por outro, não se pode negar que o desenvolvimento das relações econômicas exerce forte influência sobre a sociedade. É sobre este último ponto que disserta Richard Sennett em seu livro “A corrosão do caráter”.
Dotado de uma escrita muito clara e direta, Sennett, na obra em questão, discute as influências da fase mais recente do capitalismo no mundo do trabalho e suas repercussões no caráter humano. Esta fase é chamada pelo autor de “capitalismo flexível”. Ainda que não se faça presente em todos os setores da economia, nos campos em que se manifesta, este tipo de capitalismo traz consequências sociais importantes. A pergunta por estas consequências é o principal questionamento de Sennett. Para ele, a nova ênfase na flexibilidade tem alterado o trabalho. Sua hipótese é de que alguns valores fundamentais para a formação do caráter humano têm sido enfraquecidos pelas novas exigências de flexibilidade na atuação profissional, atrelada à emergente fugacidade das relações trabalhistas. Os valores mais afetados são a confiança, a lealdade e o compromisso.
O foco do autor recai sobre a experiência emocional. Para ele, caráter “são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem” (SENNETT, 2009, p. 10). Sendo assim, através de uma escrita quase que etnográfica, fazendo uma “descrição densa” – como diria Geertz (2008) – de situações diárias que acontecem à sua volta, Sennett trabalha à sua hipótese durante todo o livro submetendo as ideias ao “peso” da experiência concreta. Desta maneira, as situações descritas, mais do que ilustrações, se transformam na base de seus argumentos sobre o trabalho e o caráter nesta nova fase econômica.
A principal experiência, sobre a qual se assentam todas as demais discussões do livro, é um encontro do autor com Rico (como ele o chama) em um aeroporto. Sennett conhecera o pai de Rico, um faxineiro (chamado por ele de Enrico), a quem havia entrevistado 25 anos antes deste encontro, para outra pesquisa. A descrição que o autor faz deste encontro no aeroporto sugere uma robusta diferença entre pai e filho. Ele recupera, então, a experiência do pai faxineiro como dependente de uma burocracia, a “jaula de ferro” de Weber (2004), e a contrasta com a experiência do filho diplomado em engenharia elétrica, que atua como consultor, como alguém que se mantém aberto a mudanças e a correr riscos.
Na descrição da experiência do filho, Sennett recupera o medo subjacente às suas histórias de trabalho. O autor explica, por exemplo, que o jovem teve que se tornar subserviente aos horários de pessoas desobrigadas a lhe corresponder para conseguir emprego. À medida que se acumulam experiências como esta, emerge o receio da perda do controle da própria vida. No fundo, a vida “flexível” se torna uma vida à deriva. Sennett afirma isso enumerando as principais consequências da nova forma de organizar o tempo de trabalho no novo capitalismo. Com o enfoque voltando-se para o curto prazo, o próprio sentido do trabalho foi alterado. Este esquema afrouxa os laços sociais, uma vez que limita o amadurecimento da confiança informal, já que esta demanda tempo para surgir. Ao emergir uma cooperatividade superficial, torna-se difícil falar em compromissos mútuos. A conclusão não é outra, o capitalismo de curto prazo corrói o caráter humano.
Para Rico, os problemas não ficavam por aí. Na realidade eles afloravam mais ainda quando precisava equalizar a vida profissional e a vida familiar. Após várias mudanças de residência que acompanhavam as mudanças de emprego, tanto suas como da sua esposa, questões profissionais já refletiam em casa. Emergia-se o problema do exemplo. A vida profissional de Rico não podia servir de exemplo de como seus filhos deveriam se portar eticamente. O resultado é que “as qualidades do bom trabalho não são as mesmas do bom caráter” (SENNETT, 2009, p. 21). Isso, por que o princípio de curto prazo corrói o valor da lealdade e do compromisso. O comportamento profissional flexível de Rico pouco lhe servira em seu papel de pai. E o pior é que ele mesmo se sentia responsável por isso, embora estivesse diante de uma falta de controle sobre o processo. A verdade é que na vida à deriva a incerteza permeia o cotidiano.
Para entender como este grau de incerteza foi incorporado à vida profissional, Sennett faz uma reflexão crítica sobre a rotina, apresentando autores que viam seu lado positivo (cujo expoente é Diderot) e que viam seu lado negativo (cujo expoente é Adam Smith). Os argumentos mais favoráveis fazem um elogio à repetição, retomando a própria atividade artística como uma atividade que requer repetição para seu aperfeiçoamento. Já os argumentos menos favoráveis apresentam a redução do humano no trabalho industrial quando o trabalhador é submetido a atividades que lhe demandam uma parcela insignificante de sua capacidade.
É importante destacar que Sennett, ao recuperar argumentos de Diderot, não faz um elogio ingênuo à rotina. Muito pelo contrario, ele discute o fordismo e o taylorismo a luz dos dois tipos de argumentação, incluindo os críticos mais severos ao trabalho rotinizado. O que o autor procura, na verdade, é entender qual é o verdadeiro problema. Sua conclusão é que “a rotina pode degradar, mas também proteger; pode decompor o trabalho, mas também compor uma vida” (SENNETT, 2009, p. 49). Ou seja, a rotina não é em si um problema. E Sennett trabalha as narrativas de Eurico, o pai faxineiro, para demonstrar isso. Esta discussão é feita para questionar se a flexibilidade, com toda a incerteza que acarreta, seria uma solução de fato para o verdadeiro problema.
Não é a toa que o tempo é uma categoria fundamental no capitalismo e a máxima “tempo é dinheiro” testemunha isso (cf. WEBER, 2004). Vivemos atualmente num mundo em que todos parecem estar pressionados pelo tempo, ou melhor, pela falta dele. E o pior é que isto não é uma realidade apenas no mundo do trabalho. Há tanto o que consumir que o próprio lazer parece refletir as estruturas de alienação presentes no trabalho, como já foi apontado por Adorno e Horkheimer (1985). Quando não está trabalhando, o trabalhador se desdobra para conseguir fazer tudo o que deseja e, quando trabalha, fica a imaginar tudo o que poderia fazer se não estivesse trabalhando. Num mundo como esse, a oportunidade de um trabalho flexível é sedutora. Espera-se que a flexibilidade possa ser um escape da pressão do tempo. Mas a realidade descrita por Sennett parece desapontar esta expectativa.
Como o autor aponta, flexibilidade é a capacidade de ceder e recuperar-se, de ser adaptável a circunstâncias variáveis sem se quebrar. Combate-se a rotina com o trabalho flexível, mas a flexibilidade se concentra na força que “dobra as pessoas”. Atrelada à aversão pela rotina, ela não produziu maior liberdade, mas acabou gerando novas estruturas de poder. Segundo Sennett, há um sistema de poder que se esconde nas novas formas de flexibilidade.
Tal sistema é composto por três elementos. O primeiro é a reinvenção descontínua das instituições. Uma coisa que chama a atenção de Sennett é que as empresas têm-se reinventado sem dar continuidade ao que vem anteriormente. O autor apresenta algumas pesquisas que indicam que aquilo que se tem chamado de reengenharia na maioria das vezes fracassa em seus objetivos. Quando muitos trabalhadores são demitidos, há queda de produtividade entre aqueles que ficam. Estes, não ficam animados por serem os “eleitos” para continuar, mas ficam amedrontados pela possibilidade de também serem demitidos. Então por que o ímpeto pela mudança? Por que quando ela é anunciada, as ações sobem. Desta forma, as organizações são pressionadas a provar a sua capacidade de mudar, independente se o resultado é bom ou ruim. De qualquer forma, para os que detêm as ações, o saldo será positivo.
Outro elemento da nova estrutura de poder é a especialização flexível da produção. Parte da mudança citada anteriormente se deve à volatilidade da demanda. Se o mercado está em constante mudança (e as revoluções tecnológicas, cada vez mais frequentes, testemunham isso), tem-se aflorado a “disposição de deixar que as mutantes demandas no mundo externo determinem a estrutura interna das instituições” (SENNETT, 2009, p. 60). Neste caso, um aspecto importante é o regime político do país em que a instituição se movimenta, pois, em muitos casos, é o Estado que freia a mudança. Isso pode ocorrer, por exemplo, para retardá-la até que se torne socialmente suportável, como demonstrou Polanyi (2000). De qualquer forma, segundo Sennett, um regime mais liberal terá que enfrentar a desigualdade de renda, e um mais intervencionista, o desemprego. O problema é decidir qual dos males tolerar. O fato é que, em todo caso, a demanda do mercado exerce o poder sobre as instituições.
Por fim, o terceiro elemento é a paradoxal concentração do poder sem centralização do poder. O regime flexível realmente dá as pessoas nas categorias inferiores das organizações que o adotam mais controle sobre as suas atividades. No entanto, deixa a elas pouco espaço onde se esconder. Na realidade a responsabilidade é dividida. Em caso de problema, eles serão mais diretamente responsabilizados do que em uma hierarquia, como no regime burocrático. Segundo Sennett (2009, p. 65), “a contestação da velha ordem burocrática não significou menos estrutura institucional”. A dominação continua forte, mas agora é informe, demonstrando o quanto a desburocratização é enganadora. Discutindo as origens do chamado “flexitempo”, o autor demonstra que ele é distribuído de maneira racionada e desigual. No exemplo mais expoente que é o trabalho em casa, o trabalhador controla o local do trabalho, mas não o processo. O que algumas pesquisas demonstram é que este tipo de trabalhador pode até mesmo ser mais controlado do que aqueles que ficam no local da empresa. Uma ilusão para aqueles que esperavam maior liberdade.
A presença deste novo sistema de poder em meio à flexibilidade não é fácil de ser percebida, diz Sennett. Ao descrever outra situação, em uma padaria, também comparada no intervalo de 25 anos, aplicado ao exemplo de Rico, o autor demonstra a ilegibilidade desta realidade. A principal questão é que, quando a qualificação saltou do trabalhador para a máquina (embora ainda seja formalmente requisitada), perdeu-se a clareza do que significa ser um bom trabalhador. Isso traz consequências importantes para o caráter humano. A relação com o trabalho, pior do que alienação, agora é indiferença, pois a identificação com este enfraqueceu-se. Há, na verdade, uma compreensão superficial do que seja o trabalho.
Esta superficialidade advém, em parte, da mudança constante. Em determinados setores, todos sabem que não vão se aposentar em determinado emprego, então não o tratam mais com o antigo sentido de vocação (cf. WEBER, 2004). O trabalhador flexível, pelo contrário, deve estar disposto a correr riscos. Sennett discute este imperativo do risco e suas implicações para a ética do trabalho, demonstrando como é difícil criar uma narrativa de vida neste “capitalismo à deriva”. E o fracasso, o grande tabu contemporâneo, é o maior símbolo desta dificuldade.
Sennett explica como este tema tabu tem-se tornado uma realidade frequente na classe média. Através da descrição de uma situação vivenciada em um bar com trabalhadores demitidos da IBM (empresa que reduziu drasticamente o quadro de funcionários na década de 1990), o autor descreve a sequência das três explicações que são dadas para o fracasso. No primeiro estágio, ele é visto como uma traição da empresa. Os trabalhadores culpam a empresa por não valorizar seu empenho nos anos em que se dedicaram a ela. No segundo estágio, culpa-se interferências externas. No caso descrito, os demitidos acusavam estrangeiros indianos por fazerem o mesmo serviço por um salário menor (nota-se que o ponto principal é que a responsabilidade pelo fracasso já se deslocava da instituição). Já no terceiro estágio, os trabalhadores lamentavam o que poderiam ter feito para impedir o fracasso e a responsabilidade voltava toda para si. A organização demite e a explicação para isso começa por ela, mas termina voltada para o próprio trabalhador.
Desta forma, voltamos à situação de Rico que se culpava por não ser o exemplo que desejara para seus filhos. Como visto, a discussão de Sennett é eficaz em convencer de que as novas exigências de flexibilidade na atuação profissional e a emergente fugacidade das relações trabalhistas têm corroborado com o enfraquecimento de valores como a lealdade e o compromisso, fundamentais para a formação do caráter humano. O que mais chama a atenção é que, além disso, a parte mais fraca na relação, o trabalhador, que é quem sofre de perto todas as consequências disso, especialmente em sua relação familiar, ainda tende a responsabilizar a si mesmo pelas situações mais difíceis que estão fora de seu controle, como um ímpeto por construir uma narrativa de sentido sobre o seu próprio fracasso. Os setores da economia que têm adotado o regime de flexibilidade, na verdade criam uma vida à deriva, que torna os sistemas de poder ilegíveis, a ponto da demissão, o ato mais tirano de quem detém o poder, ser lido pelo trabalhador como o seu próprio fracasso. É a própria sociedade transformando-se face às relações econômicas, todavia mantendo as velhas desigualdades de poder, ainda que envoltas em uma nova trama social. Assim, é o trabalhador que sofre as piores consequências de ter o caráter humano sendo corrompido.
REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural. O esclarecimento como mistificação das massas. In. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 113-156.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das culturas. 13. reimpr.Rio de Janeiro: LHC, 2008. p. 3-21.
POLANYI, Karl. A grande transformação: As origens da nossa época. Trad. Fanny Wrabel. 2. ed. Rio de Janeiro: Compus, 2000.
SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Trad. Marcos Santarrita. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2009.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. Ed. Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
[1] Mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Ciências Humanas (2012) pela mesma instituição e em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson José Sena da Silveira. E-mail: dnney@ibest.com.br