Esboço da teoria weberiana sobre o sistema capitalista
Waldney de Souza Rodrigues Costa[1]
Resenha de: WEBER, Max. Ascese e capitalismo. In. WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. Ed. Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 141-167.
O capítulo “Ascese e capitalismo”, também nomeado como “Ascese e espírito capitalista” em algumas versões, é o último capítulo da obra prima de Max Weber: “A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo”. Esta parte pode ser considerada a conclusão ou até mesmo um resumo da tese weberiana sobre o sistema capitalista. Nela estão presentes os principais pontos tratados pelo autor tido como um dos pais fundadores da sociologia, ao lado de Karl Marx e Émile Durkheim.
Embora sejam considerados autores “clássicos” da Sociologia, Durkheim, Marx e Weber lançaram olhares diferentes sobre a sociedade e isso lhes fez adotar métodos distintos para interpretar a realidade. Enquanto Émile Durkheim partia de um “holismo metodológico” se manifestando preocupado com a coesão social, Karl Marx interpretava a realidade a partir da dialética e da luta de classes, visando a “emancipação” dos homens. De certa forma Weber se afasta destes dois. De Marx por conceber que a interação humana se dá em diversos sentidos e categorias e não somente por uma luta de classes, e de Durkheim, porque ao invés de lançar o seu olhar sobre o todo social, ou “holos”, volta a sua atenção para o indivíduo, imputando o que ficou conhecido como individualismo metodológico.
Para a devida compreensão da tese de Weber expressa e resumida no capítulo em questão é preciso entender os propósitos sociológicos da obra em si. A preocupação primordial do autor é com o capitalismo moderno. Em sua interpretação, para que este sistema econômico tomasse a dimensão que hoje conhecemos foi necessário que as pessoas fossem dotadas de um estilo de vida específico. Nesta pesquisa, o autor se propõe a:
averiguar se, e até que ponto, influxos religiosos contribuíram para a cunhagem qualitativa e a expansão quantitativa desse “espírito” mundo afora, e quais são os aspectos concretos da cultura assentada em bases capitalistas que remontam àqueles influxos. [grifo original] (WEBER, 2004, p. 82).
Para o cumprimento dessa tarefa, são apresentados tipos ideais de “espírito do capitalismo” e de “ética protestante”. Esta noção de tipo ideal é uma das contribuições mais caras de Weber à teoria sociológica. Em suas palavras, trata-se de “uma reconstrução ideal típica no conjunto histórico de um certo número de características para construir um todo inteligente” (WEBER, 1998, p. 466). Em um conceito típico ideal acentuam-se determinados traços da realidade para poder interpretá-la. É uma ferramenta criada para reduzir conceitos abstratos à ação compreensível.
O tipo ideal de “ética protestante” apresentado por Weber é o modo puritano de conduta de vida. A principal característica destacada é tratamento do trabalho mundano cotidiano como um dever. Para construir este tipo, o autor retoma a concepção que Lutero tinha de “vocação” (beruf), “aquilo que o ser humano tem que aceitar como designo divino [...] a missão dada por Deus” [grifo original] (WEBER, 2004, p. 77). Constatando que esta expressão se fazia “presente em todos os povos predominantemente protestantes” (ibid., p. 71), Weber a concebe como a raiz da ética que pretende apresentar. No entanto, esta concepção não gerou imediatamente um estilo de vida. Foi o calvinismo que a fez perdurar, produzindo uma ética peculiar[2] (ibid., p. 71, 72).
Esse processo não aconteceu de forma intencional, mas foi uma consequência imprevisível, até mesmo indesejada pelos reformadores (ibid., p. 81). É decorrente de um problema soteriológico, ou seja, de saber quem está salvo, quem vai para o “céu”. “A teologia medieval identificava a Igreja romana com o Reino de Deus. [...] Ela [a igreja] seria o Reino de Deus e quem estivesse fora do Reino seria considerado alguém fora da comunhão dos salvos” (WESTPHAL, 2013, p. 81). Portanto, a igreja era o único caminho para a salvação. Lutero e Calvino passaram a entender a igreja como instituição humana e acreditaram ser um equívoco pensá-la como o “reino da justiça de Deus” (ibid., p. 81). Isso criou um problema: e agora, quem é salvo?
A resposta peculiar de Calvino a esta pergunta deu origem ao que Weber chamou de ética protestante. Semelhante a Lutero, Calvino afirmava a salvação pela graça mediante a fé, excluindo qualquer mérito humano, mas introduziu a doutrina da predestinação. Nela entendia-se que, por decreto de Deus, alguns homens estão predestinados à vida eterna e outros à morte eterna (WEBER, 2004, p. 91). O problema é que somente Deus saberia quem está predestinado (ou eleito). Assim, os protestantes calvinistas se inquietaram por não saberem se estavam salvos ou não. A solução encontrada foi aceitar que os eleitos são aqueles que têm a firme confiança de que o são (ibid., p. 100). É a partir daí que a concepção luterana de vocação foi transformada em um “sistema ético” (ibid., p. 99). Uma vez que considerar-se eleito tornou-se um dever, o trabalho profissional foi visto como um meio eficaz de adquirir esta autoconfiança (ibid., p. 102).
Diferente dos católicos que realizavam boas obras isoladas, os protestantes, influenciados pela doutrina da predestinação, transformaram a santificação pelas obras em um sistema, pois elas se tornaram imprescindíveis como sinais de eleição. Como consequência, eles passaram a ter uma vida sempre alerta, a semelhança dos monges (ibid., p. 110). A diferença é que ao invés de ficarem reclusos, deveriam se santificar em meio à vida comum. Por isso Weber chama este comportamento de ascese intramundana (ibid., p. 109). Trata-se de uma conduta de vida calvinista que permeou outros movimentos dentro do protestantismo, que imitaram ou se compararam com ela (ibid., p. 117). Esta seria a ética protestante.
A partir desta apresentação preliminar, torna-se agora possível a apreensão da tese weberiana. A principal ideia é de que a ascese protestante parece ter contribuído com a formação de um estilo de vida típico do capitalismo tal como o conhecemos. Não em uma relação causal, mas de afinidade eletiva. Uma espécie de retroalimentação. Na ótica weberiana, parece ter havido um contexto específico em que protestantismo e capitalismo se “afinaram” nos mesmos grupos sociais. Existiriam alguns aspectos da cultura capitalista que remeteriam a influxos religiosos deste contexto. No capítulo em questão, o autor apresenta o caminho percorrido até esta conclusão.
De início, Weber apresenta que a ética protestante não tinha consequências apenas para a vivência do trabalho. Tratando o protestantismo como um bloco e elegendo um representante significativo, o teólogo e pastor presbiteriano Richard Baxter, Weber demonstra as consequências para outros aspectos da vida. O propagador do puritanismo condenava o gozo da riqueza, o ócio e o prazer, destacando a perda de tempo como o mais grave dos pecados (ibid., p. 143)[3]. Em Baxter, a vocação já não era destino, como em Lutero, mas uma prescrição/ordem divina (ibid., p. 144). Para ele, mais do que zelar por uma profissão como sinal de eleição, o cristão verdadeiro deveria fugir da “tentação de abandonar-se ao ócio, à preguiça e ao pecaminoso gozo da vida” (ibid., p. 148). O gozo e, consequentemente, o consumo se tornaram inimigos da ascese[4].
Outro fato destacado é que esta espécie de elogio protestante ao trabalho não era feito a qualquer tipo de ocupação. Estimava-se a profissão fixa. A vida profissional era vista como um consistente exercício ascético das virtudes. Mas com uma diferença. Era aceitável e até mesmo desejável a mudança de profissão com a finalidade de obtenção de maior ganho. Entendia-se que a riqueza não era um problema em si, mas apenas como uma tentação para entregar-se ao ócio (ibid., p. 148). Era lícito ficar rico para Deus, mas não a ostentação da riqueza.
Esta ética ascética puritana teria pontos de influência direta sobre o estilo de vida capitalista. Pessoas sob esta influência tinham uma relação hostil para com os bens culturais. Restringia-se e limitava-se o desfrute daquilo que posteriormente seria entendido como lazer. Ao agir contra o gozo das posses, imprimindo restrições, embora não o esgotamento, a ascese gerou um resultado importante. A propensão ao trabalho somada à abertura ao lucro e à restrição do consumo gerou poupança. Assim, os obstáculos colocados ao consumo acabaram favorecendo com que a riqueza adquirida fosse reinvestida, o que possibilitava a acumulação do capital.
O ponto principal é que alguns destes ideais de vida fraquejaram diante da riqueza. Mas mantiveram a forma religiosa, embora o espírito estivesse desvanecendo. A conclusão a que Weber chega é que, quando o ápice do entusiasmo religioso passou, os efeitos da educação para a ascese ficaram (ibid., p. 160). Surgiu, então, um ethos profissional tipicamente burguês, em que se podia lucrar, desde que não se fizesse um uso escandaloso da riqueza. Um estilo de vida que gerava o engajamento dos empresários e a conformação dos trabalhadores, uma vez que o trabalho se tornou um dever para ambos (ibid., p. 163).
Sendo assim, os mesmos conteúdos puritanos eram encontrados no capitalismo, mas apagados da fundamentação religiosa. A ascese acabou contribuindo para edificar o cosmos da ordem econômica moderna. Além disso, a extensão desta espécie de racionalização da vida se deu de tal forma que afetou todas as dimensões humanas, como uma espécie de “jaula de ferro” (ibid., p. 165). E o dever profissional, apesar de perder o arrimo religioso, passou a rondar a vida como um fantasma. Para Weber, nada garante que com maior grau de racionalidade do mundo se consiga maior felicidade ou liberdade. Pelo contrário, se mostra até mesmo um pouco pessimista quanto ao futuro, por constatar esta perda de valores últimos, advindos do avanço dos processos.
Tem-se então que Weber, diferente de Karl Marx, não só aceita que as condições materiais da existência possam condicionar a cultura, mas também o contrário. Sua tese sugere que elementos culturais (no caso, ideias religiosas) tiveram um papel significativo na definição das condições materiais do sistema econômico vigente. Esta é uma interpretação bem diferente da forma como a infraestrutura condiciona a superestrutura na teoria marxista. Para Weber, um ethos específico, que ainda remete aos influxos culturais sobre a economia acima descritos, é um dos componentes essenciais do capitalismo, ao lado da divisão social pela posição econômica, da empresa moderna racionalizada e da expansão da burocracia.
Mesmo diante de toda relevância desta análise, algumas questões ficaram abertas. Primeiramente, Weber não parece ter explicado como influxos culturais podem incidir sobre a economia na atual configuração. Como foi apontado por Raud-Mattedi (2005, p. 132), embora tenha exposto nesta tese que, em um contexto específico anterior, aspectos culturais influíram sobre a ordem econômica, Weber não se deteve, no conjunto de sua obra, à apresentação do potencial regulador das convenções sociais frente ao mercado. Para Raud-Mattedi elas têm um papel maior do que o Direito.
Outra questão pendente na análise é a respeito do consumo. Não seria este outro pilar da expansão capitalista? Este problema é levantado por Campbell (2001). Este autor não discorda da análise de Weber, mas a toma por incompleta. Então, propõe, seguindo os passos do próprio Weber, analisar como surgiu ao lado da propensão ao trabalho como um dever, uma propensão ao anseio, que é traduzida por ele como o “consumismo moderno”.
A despeito disso, a tese weberiana ainda se revela atual e relevante na exposição de traços importantes do sistema econômico capitalista. Ao expor como a racionalização da vida presente no protestantismo puritano influiu sobre o ethos capitalista, abriu a possibilidade de pensar como a racionalização traz elementos inovadores juntamente com o capital. E este é uma de suas maiores críticas em relação à Marx. Embora se aproxime deste ao identificar o capitalismo com a divisão de classes sociais, demonstra que, mesmo sem o capital, ainda é preciso enfrentar a burocracia.
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Trad. Mauro Gama. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
RAUD-MATTEDI, Cécile. A construção social do mercado em Durkheim e Weber: análise do papel das instituições na sociologia econômica clássica. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 57, p. 127-142, fev. 2005.
WEBER, Max. Economia e sociedade. 4 ed. Brasília: Editora da UNB, 1998.
______. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. Ed. Antônio Flávio Pierucci. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
WESTPHAL, Euler Renato. Protestantes e católicos: diferenças e semelhanças básicas (uma visão protestante). In: DIAS, Zwinglio; PORTELLA, Rodrigo; RODRIGUES, Elisa. (orgs.). Protestantes, evangélicos e (neo) pentecostais: história, teologias, igrejas e perspectivas. São Paulo: Fonte Editorial, 2013. p. 73-86.
[1] Mestrando em Ciência da Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF como bolsista CAPES. Bacharel em Ciências Humanas (2012) pela mesma instituição e em Teologia pela Faculdade Unida de Vitória – ES (2011). Desenvolvendo pesquisa na área de ciências sociais da religião, sob a orientação do professor Dr. Emerson José Sena da Silveira. E-mail: dnney@ibest.com.br
[2] O termo calvinismo diz respeito a uma expressão religiosa que tem origem nas ideias e obras de João Calvino (1509-1564) que, ao lado de Lutero e Zwinglio, protagonizou a Reforma Protestante do século XVI. Calvino, aderindo às ideias de Lutero, levou a Reforma para Genebra (Suíça). Foi neste contexto que surgiu o que se denomina “Movimento Reformado”.
[3] O que vai ao encontro de uma das máximas do “espírito” capitalista: “tempo é dinheiro”.
[4] Representantes do movimento puritano atacaram veementemente às belas-artes, à literatura não científica, às festas (incluindo o Natal), à arte sacra, ao teatro (inclusive autoridades puritanas fecharam um teatro e negaram a autorização para abertura de outro) e àquilo que chamavam de “conversa mole”, ou seja, a própria sociabilidade (ibid., p. 153, 154).